sábado, 8 de novembro de 2014

Enunciação na canção "João e Maria" de Chico Buarque e Sivuca





 João e Maria
(Intérprete: Chico Buarque / Autoria: Chico Buarque e Sivuca)
Agora eu era o herói
E o meu cavalo só falava inglês
A noiva do cowboy
Era você além das outras três
Eu enfrentava os batalhões
Os alemães e seus canhões
Guardava o meu bodoque
E ensaiava o rock para as matinês
Agora eu era o rei
Era o bedel e era também juiz
E pela minha lei
A gente era obrigado a ser feliz
E você era a princesa que eu fiz coroar
E era tão linda de se admirar
Que andava nua pelo meu país
Não, não fuja não
Finja que agora eu era o seu brinquedo
Eu era o seu pião
O seu bicho preferido
Vem, me dê a mão
A gente agora já não tinha medo
No tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido
Agora era fatal
Que o faz-de-conta terminasse assim
Pra lá deste quintal
Era uma noite que não tem mais fim
Pois você sumiu no mundo sem me avisar
E agora eu era um louco a perguntar
O que é que a vida vai fazer de mim?
Fonte: http://letras.mus.br/chico-buarque/45140/ 

            Analisando a enunciação que se faz presente na letra da canção “João e Maria” de Chico Buarque e Sivuca, através de uma visão bakhtianiana, podemos notar, entre as várias leituras possíveis, a voz de alguém que ocupa a posição social de um garoto em um mundo de fantasias, onde se imagina em uma situação fora da realidade, fazendo parte do mundo criado pela brincadeira e pela imaginação. Nesse mundo imaginário, aparece um sentido ideológico de força e poder, ou seja, o garoto, da sua posição social de “garoto sonhador”, é denominado como herói (agora eu era o herói), valente (eu enfrentava os batalhões), alguém que ocupa cargos de superioridade (agora eu era o rei,
era o bedel e era também juiz).  Esse sujeito se dirige a um interlocutor (seu “outro”) através da palavra, e é esta que cria uma ligação entre eles. Tal interlocutor é representado pela forma “você” (anoiva do cowboy
era você além das outras três / e você era a princesa que eu fiz coroar / pois você sumiu no mundo sem me avisar). A interação que há entre o locutor e o interlocutor se dá por estarem ambos adotando um papel social em um dado contexto. Além do papel de “garoto sonhador” (devido ao estar  em um mundo de imaginação), pode-se  dar ao locutor um lugar social referente a paixão (de um apaixonado), e por sua vez, a seu interlocutor (tu), o lugar social de alguém que não corresponde a um amor (o que se verifica em: “Não, não fuja não”, “Pois você sumiu no mundo sem me avisar”).
            Alguns índices enunciativos, tais como indica Benveniste, podem ser encontrados na letra da canção, a saber:

            - Índices de pessoa:
            EU: Agora eu era o herói.
            TU:  Era você além das outras três

            - Índices de tempo (também presentes no tempo e modo verbal):
            AGORA: Agora eu era o herói
            ENTÃO: Guardava o meu bodoque / No tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido

            - Índices de espaço (também presentes em certos modos verbais de certos verbos):
            AQUI:  Vem, me dê a mão /Pra lá deste quintal.

            Uma vez que encontramos índices de pessoa (eu/tu), a enunciação está enunciada. O “eu” do texto, ou seja, seu locutor, está produzindo um enunciado já que que está utilizando e colocando a língua em funcionamento de modo individual e, assim, está se propondo como sujeito. Se há enunciação, o sujeito está comprometido com ela. Vendo a enunciação pelo aspecto que Benveniste chama de “quadro formal de sua realização”, temos na letra da música um locutor (EU) e um locutário (Você), e a língua expressa uma relação com algo extralinguístico (algo do mundo), que poderia ser a vida imaginária (como herói, rei, bedel, juíz, etc) contada pelo locutor. No que se refere ao “aparelho de funções” (interrogação, intimação e asserção), encontramos presentes as três funções, seguem abaixo alguns exemplos:

            - Asserção (a mais presente):
            Agora eu era o herói
            Agora eu era o rei
            Era o bedel e era também juiz
            E pela minha lei
            A gente era obrigado a ser feliz
            E você era a princesa que eu fiz coroar
           
            - Intimação:
            Não, não fuja não
            Finja que agora eu era o seu brinquedo
            Eu era o seu pião
            O seu bicho preferido
            Vem, me dê a mão

            - Interrogação:
            E agora eu era um louco a perguntar
            O que é que a vida vai fazer de mim?

            No caso da interrogação presente, a resposta não é de responsabilidade do alocutário, mas do próprio locutor, que pergunta a si mesmo, ou, de um outro ponto de vista, poderíamos dizer que se trata até de uma pergunta retórica (portanto que não suscita uma resposta evidente). A enunciação está portanto, sob uma visão que está,de acordo com Benveniste, estruturada no diálogo que se dá entre locutor e alocutário.

Um comentário:

  1. Eu gostei do texto e gostaria de citar num trabalho acadêmico, mas não sei o nome do/a autor/a.

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